A noite estava bem agradável e uma certa bagunça na hora do rush da decorava a estação de Hamamatsu em Shizuoka. Sorte que o meu hotel era bem perto e que chique, havia uma passarela direto para o edifício. Eu com a minha mala de mão olhei para a ponte e para a avenida que corria rente à linha do Shinkansen. Bora caminhar um pouco, já que o dia foi bem tenso.
Para se ter uma idéia, acordei em Kyoto, almocei em Wakayama, jantei em Osaka com meu querido amigo Guy Levy e chegando em Shizuoka de noite. 4 províncias em um dia, não é mole. Fora a adrenalina da 10º Cerimônia de Condecoração dos Sakes Samurais em 2015, que tornei o primeiro da America Latina. Haja emoção!
Precisava jantar. Então, caminhei pelo asfalto onde só tinha uma única faixa branca que separava onde eu deveria andar e onde eu morreria atropelado. E debaixo da linha suspensa do Trem Bala, estava estacionado um Yatai, carrinho que servia rámen. Bem típico. Nem dava mais para saber que tipo de madeira era feita o carrinho de tão surrado que estava. Um banco para acomodar umas 4 pessoas, a cortina Noren Azul-marinho-desbotado e as lanterninhas vermelhas escritas rámen. Do outro lado, em um banquinho, um senhorzinho segurando o cigarro com os dentes e lendo jornal. Uma cena clássica de comida de rua raíz.
"Opa, meu jovem. Irasshaimasse! Vai o que?"
Dobrou o jornal, mas ficou com o cigarro aceso. Eu também acendi o meu.
"O que o senhor sugere? Manda aí o seu melhor."
"Então é o Shoyu. Guenta aí que já faço procê. Quer beber alguma coisa? Quer shochu?
"Pode ser. Um pouco, porque já tô bem alto hahahahah"
"Amanhã é domingo. Aproveita a noite. Segura o copo aí. Pronto. Vai bebendo aí, que o macarrão já está quase no ponto."
O senhor orquestrava os ingredientes de uma forma bem suave. Tudo parecia se mexer sozinho. Fumacinha branca criava uma cortina entre nós. Cortava o Chashu escuro, o Menma, o Kamaboko e já deixou o potinho de cebolinha picada no jeito.
"Você não é daqui, né? É de Kyushu?"
Pois é. São coisas que não percebo no Brasil. Mas para os ouvidos dos japoneses, meu idioma nipônico é mais "cantado" o que revelaria que sou do sul do Japão. De certa forma ele acertou, pois minha mãe é de Fukuoka que fica em Kyushu que me influenciou bastante.
"Sou do Brasil, mas minha falecida mãe era de Fukuoka."
"Entendi. Você fala bem. Legal. Ó, cuidado que tá quente. Isso. Agora sim! Prove meu Ramen. Botei mais carne porque você tá bêbado HAHAHAHAHAH"
Cara, que show de Omotenashi. Muitas vezes, o carinho que você não espera, pode vir de maneira tosca e rude. Mas o que vale é mesmo a intenção. E o rámen estava sensacional!! Apesar do caldo bem temperado, o dashi de porco não era pegajoso. O Chashu cozido e frito estava bem macio e temperado com gengibre dava um toque fenomenal.
"Vem cá, esse Chashu é temperado?"
"Opa, como é bom conversar com alguém que tem paladar. Cozinhei primeiro, deixei descansando e depois fritei ele inteiro, como se fosse um Shogayaki. peraí..." Passando o trem bala em cima de nós e tremendo o chão - ...Daí trago pra cá e só fatio."
"Sensacional!! Tá muito bom."
"Eu sei. Quando sobra, como ele com gohan HAHAHAHAHAH" Adivinha.
Pedi outro de tão bom que tava. Sorte a minha que no dia seguinte era domingo e não precisava acordar cedo, pois não tinha compromisso. Então que se dane. Comer e beber até cair, já que o hotel era atravessando a rua.
"E você tá aqui no Japão a passeio? Veio visitar alguém?"
Expliquei toda a missão que vim fazer, o que faço no Brasil com os Sakes, do perrengue que passei para transmitir a cultura do Japão em meu país.
" Que legal!! Muito obrigado por divulgar a nossa cultura no Brasil. Eu tô aqui fazendo a minha parte. Mesmo no Japão, as pessoas não sabem de porra nenhuma. Só querem saber de fast food, de coisa já pronta."
Apesar de passar um monte de gente atrás de mim, taxis e caminhões de pequeno porte dividindo a mesma mão da rua, fora os trens passando por cima de nós, parecia que o tempo havia parado para gente. Até aquele momento, eu era o único cliente.
Lá pelas tantas, o senhorzinho também sentado, continuamos o papo. Eu já com a alma se desprendendo do meu corpo, estava com os braços no balcão e de mãos cruzada com o queixo em cima.
"Sabe, estou aqui no Japão faz 5 dias. Fui até Iwate, pra Kyoto, Wakayama, Osaka e aqui. Ainda vou pra Sendai, Yamagata, Gunma e Tokyo. Tantas pessoas que já encontrei e que vou me encontrar. Muita coisa que fiz pela gastronomia e outras tantas que preciso fazer. Só que agora que o nervosismo da cerimônia passou, me dei conta de uma coisa. Meu pai que estava doente faz 1 ano e faleceu no dia da minha partida. Até tentei cancelar a viagem toda, mas muita gente disse que não. Inclusive a minha mulher me incentivou a vir pra cá. Do que adianta todo mundo triste e eu perder um título que ganharia depois de muita luta." - e começou a escorrer uma lágrima no meu rosto.
O senhorzinho tirou a touca e deu a volta com o garrafão de Shochu. Sentou do meu lado. Continuei
"Hein, o que o senhor acha? Meu pai morreu e estou aqui viajando. Sou um belo de um filho da puta, não acha?"
"Olha, já tô nesse ramo faz uns 20 anos. Nunca gostei de estudar, de trabalhar pros outros. Sempre gostei de rámen. E tô aqui numa boa, livre, sem mulher e filhos. Só que aprendi a observar as pessoas. Ficar adivinhando como elas são. Cara, você é o orgulho pro seu velho. Imagina, você que tá do outro lado do planeta, ganhar um título desses. Não é pra qualquer um e no mínimo você não é um filho da puta. Passa seu copo pra cá.... esse aqui é por minha conta.
Ele se levanta para alcançar mais outros dois copos. Serve o shochu de batata-doce e segura uma delas.
"Sei que sou um estranho e te conheci hoje. Mas vamos brindar o seu velho. Ele deve estar bem feliz pra caralho..... Para de chorar, porra! - me xingou, mas ele também estava limpando os olhos.
Os três copos se tocaram…
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Lindo!