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Foto do escritorAlexandre Tatsuya Iida

Comida afetiva


Eu e meu pai caminhando pelas ruas de Tsu em Mie, a primeira vez que viajamos juntos e a sós. Sim, nós viemos buscar as cinzas da minha mãe que havia falecido há poucos meses em Fukuoka. Uma situação que apertava os nossos peitos, mas fomos buscar a minha mãe e levar para casa. E aproveitando para dar as caras nos parentes de meu pai, chegamos em Mie.

Procurando um lugar para jantar, encontramos um Ryoutei perto da praia.

Bem aconchegante, garrafas de shochus e whiskies decoravam a estante no fundo do balcão. Algumas mesas para 2 e 4 pessoas. Na outra entrada deve ser o acesso para as salas de tatamis privativas. Limpando as mãos com o Oshibori, escolhemos um sake para tomar. Claro, seguindo a sugestão do Itamae já que embora eu estivesse trabalhando numa cozinha, ainda não havia começado a trilhar o caminho do fermentado de arroz.

Então a porta de correr se abre e um senhor de terno marrom e cabelo grisalho-detetive-nipônico entra com a sua esposa e a filha, mais alta que os dois. Se sentam ao nosso lado. Cumprimentam a gente o que retribuímos. E logo em seguida, o senhor olha para o Itamae e:

"Oyakata, será que está tudo pronto? - e olhando para a filha - "Olha, filha, hoje tudo aqui foi preparado para você, viu. Vai poder matar a saudade de casa." - e olha pra nós - "Gostaria de se juntar a nós?"

Meu pai: "Não será um incômodo? Acho que é o momento de vocês."

"Imagine! Quanto mais gente mais legal fica. Oyakata, pegue mais dois copos para os amigos e para você também. Vamos brindar HAHAHAHAHAHAH"

Depois de um golão de sake: "Minha única filha voltou hoje de Paris depois de 3 anos. Foi fazer estágio em uma cozinha famosa de lá."

"Nossa, que legal! Deve ter sido especial conhecer outras culturas, pessoas diferentes."

"Só que com o coração na mão. Uma menina viajando sozinha. Vai que conhece um cara estranho. O senhor deve entender como pai. Essa aqui não deu um telefonema sequer, nenhum e-mail para ver se estava bem. Uma filha desnaturada HAHAHAHAHA."

"Sei bem o que é isso" - e meu pai olha para mim.

"Mas eu sempre ligo pro senhor."

Os primeiros pratos começaram a vir. A filha se maravilhava com a montagem dos pratos e dizia sentir saudades do Japão. Cada hashizada que ela dava suspirava e afinava os olhos. Mas eu senti que alguma coisa estava se enroscando ali.

"Ontem fiquei eu e minha mulher pensando o que minha filha queria comer. Sushi, sashimi, Oden, Udon. Mas pensei que o Kaiseki fosse a melhor opção, já que vem mais coisas do Japão. Por isso, viemos direto do Aeroporto de Nagoya pra cá. HAHAHAHAHAHAH"

Meu pai só ficava apreciando a imagem daquela família, curtindo o Sake.

Depois do 5º prato, o Oyakata também repara que algo não corria bem : "Acho que os nossos pratos podem parar por aqui. Vamos perguntar a sua filha o que ela realmente deseja comer."

"Como assim??? Filha, você não está gostando??? Este é o melhor restaurante da cidade!! O que você queria comer??? Sushi? Sashimi?!"

Então me intrometi: "Acho que ela quer comer um prato da sua mãe, não é?"

Acho que foi a primeira vez que ela olhou pra mim no fundo dos olhos. E concordou.

"Sabe o que é, pai. Já na primeira semana em Paris percebi que eu glamourizava a culinária francesa e achava que tudo era chique. Mas não é. É uma competição entre os cozinheiros, ganha aquele que tem iniciativa. Precisa ter traquejos que nós japoneses não temos. Acorda e dorme no escuro. Quase não víamos o sol. Fornecedores querem te sacanear, clientes que reclamam de tudo, meu superior quando achava um defeito, quase imperceptível, jogou toda a assadeira que preparei, no chão. Pensava em desistir quase todos os dias. Então não quis ligar pra vocês, senão pegaria o primeiro vôo para o Japão. É claro que sentia falta de vocês..."

Estendi o oshibori fechado que peguei da outra mesa.

"Ai, obrigada. ...E sabe o que mais sentia falta? O Karê da mamãe. Ela fazia pra mim sempre quando não tinha fome, quando estava doente ou triste. Como se o Karê fosse a minha vitamina. Então prometi pra mim mesma. Depois de suportar os 3 anos e voltar ao Japão, a primeira coisa que vou comer é o Karê da mamãe."

O pai aos prantos: "Por que você não disse isso, filha." enquanto a filha era amparada pela mãe, também chorando. Então o Oyakata chama 2 cozinheiros ao balcão.

"Se a senhora quiser atender o desejo de sua filha, temos os ingredientes do karê, os legumes e a carne. Não sei se é do seu gosto, mas por favor, fique à vontade."

E de mãos dadas as duas foram para dentro da cozinha escoltadas pelos cozinheiros da equipe. Vendo o pai arrasado, envergonhado e com as duas mãos na cara, Seo Iida o chama para perto da gente. Limpando o rosto, o pai pula duas cadeiras e senta ao nosso lado

"Como sou um pai idiota. que ridículo! Não conheço nada da minha própria filha."

"Acho que não é bem assim. Essa viagem a fez crescer vários anos de uma vez. E ela teve todo um carinho com o senhor. Não fique assim. Garanto que ela viu a sua empolgação e não teve coragem de dizer que queria o Karê. Isso é compaixão aos pais."

"Sim. Ela é uma excelente filha. Eu acabei me intrometendo e até peço desculpas." - disse o Itamae.

"Imagina, Oyakata. Se não fosse o senhor, acho que eu não ia descobrir tudo isso. Ela guardaria com ela. Eu te agradeço."

E seguimos conversando quando o cheirinho de Karê chegava até nós. E não só para a família, foi servido para nós também. Até para o Oyakata que provou um pouquinho, pois tinha de manter o palato limpo.

E realmente tem a doçura de mãe, independente de ingredientes ou condimentos. O carinho, a quentura, o aconchego.

Eu: "Parabéns por suportar os 3 anos. Esse Karê é um verdadeiro troféu pra você, não é"

"Obrigada. Ai, nem fale. E você trabalha com que?"

"Na cozinha também. Temos uma casa onde produzimos bentôs no Brasil. E sei muito bem o que você passou em Paris. Todos os detalhes que você disse senti em mim. Principalmente do seu chefe."

"Nossa era o Diabo em pessoa."

"Pois é. Olha o meu Diabo sentado aqui do meu lado."

Todos nós rimos muito e tomei um tapão do meu pai. Que momento lindo e inesquecível que vivemos nesta noite.. Lembro que ao sair do restaurante, olhei para a noite estrelada e:

"Que saudade do Karê da mamãe, né pai?"


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