No post do Kabayaki de Unagui, falei sobre o TARÊ DE UNAGUI quando o itamae @criatianokomiya do @newkotooficial em Brasília fez a citação de uma tradição que me lembrou de um amigo em Osaka. Contarei.
Amigo que sempre me visitava nas minhas passagens por Kyoto e a gente enchia a cara. Ele é o culpado por uma mania estranha minha . Se estou numa mesa em estado de embriaguez e falando japonês, começo a falar no sotaque de Kansai, o que me deixa mais agressivo nas palavras.
Então, ele trabalhava há anos numa casa de Unagui em Osaka e quase 95% dos pedidos são o KABAYAKI. Poucos são a enguia no sal e outros preparos. Com quase 11 anos de estadia, já passou do tempo para poder assumir o braço direito do HANAITA = “Itamae Chefe”. E estava para ser promovido.
Nessa noite que nos encontramos em um izakaya perto da estação de Kyoto, ele estava com um sorrisão amarelo. E claramente reparável e perguntei:
- Você tá bem?
- Você não sabe. Meu pai tava lá assando os unaguis e acho que com o calor, deu uma sentada no banquinho e apagou.
- PQP, mas ele tá bem?! Tá lá em Shiga?
- Sim e não. Acho que foi um AVC e ele tá acamado. Ele tá estável agora, me reconhece e tal. Só que ele tá mais preocupado com a loja que outra coisa.
Já imaginei a situação. Um lado, a família precisando do único cozinheiro entre os filhos. Por outro, tem outro "velhinho" que estaria passando o bastão do comando para ele depois de 11 anos de caminhada. E imaginando que a bomba cairia para mim, comecei a pensar em algo.
E veio. Perguntou o que eu recomendaria.
- É uma situação impossível entre a razão e a emoção. A razão vai dizer para largar tudo e salvar a família. A emoção vai considerar os 11 anos que seu "segundo" pai te cuidou. Mas o seu chefe sabe que um dia você partiria de volta para casa. Então não se decida. Jogue a situação e deixe seu chefe decidir. Isso é o maior sinal de respeito.
Semanas depois me voltei para o Brasil, mandou um e-mail dizendo que contou tudo para o seu chefe. No salão apenas com poucas lâmpadas acesas, ele ouviu tudo com o cigarro na boca, braços cruzados e olhando para baixo. Depois apagou o no cinzeiro, suspirou, se levantou e foi para a cozinha. Deve ter ficado frustrado ou chateado.
Ouviu alguns sons lá dentro, mas meu amigo cabisbaixo não tinha brecha para interpretar nada. Devia tudo a este homem, como ao seu pai também. Pensamento andando em cima de cascas de ovos, a tensão era tão grande que dava ânsia.
Então ouve passos arrastados do chinelo e o som de algo pesado na mesa à sua frente. Ele levantou a cabeça e viu uma pequena ânfora com um papel entre a tampa vedada. E começa a chorar se debruçando na mesa.
O chefe se senta e:
- Acho que é o meu primeiro NOREN WAKE na vida. Nunca confiei esta loja a ninguém. Vá salvar a sua família. Eu que sou grato a eles por me darem você que considero um filho. Aqui tem outros meninos que vão me cuidar. A sua família, só você pode salvar.
Chefe dá uma tossida e:
- E obrigado por me trazer o problema pra mim. Talvez seja a última coisa que eu fiz para você como um filho meu. Não se preocupe comigo. Lembrar que não consegui salvar o meu pai.
O TARÊ do Kabayaki de Unagui é o coração desse tipo de comércio. E o criador entregar o maior segredo do sucesso da casa, só para discípulos de confiança, que darão continuidade do sabor e da tradição. NOREN WAKE é "dividir a cortina" que é como placa da casa.
Eu chorei lendo o e-mail dele. O pote foi o sim do chefe.
Que história linda! Escorreu uma lágrima aqui... 🥲